Alpha?!
Este diálogo aconteceu via MSN de forma mais ou menos fiel (eu gosto de editar os textos; velhos hábitos não morrem) no dia 17 de maio, entre Guilherme Dei Svaldi, editor na Jambô Editora, e eu.
Guilherme: Cara, tu tinha que estar aqui na loja agora...
Capitão Ninja: É? Por quê?
Guilherme: Um pessoal organizou umas mesas de RPG de Harry Potter aqui, tem umas trinta pessoas jogando 3D&T.
Capitão Ninja: Isso não é possível!
Guilherme: Estão usando a adaptação de Harry Potter que saiu na Dragão Brasil.
Capitão Ninja: Mas esse pessoal não larga mesmo o 3D&T...
Guilherme: Não tem sistema melhor para leigo.
Capitão Ninja: Fala que eu mando um abraço, e que eles são teimosos feito mula.
Guilherme: Hahahahahah
Capitão Ninja: Tive uma idéia maluca agora. Vem cá, por acaso vocês querem fazer um novo Manual 3D&T?
Guilherme: Nunca pensei nisso...
Capitão Ninja: Nem eu. Até agora.
Guilherme: Que um sistema para iniciantes está fazendo falta no Brasil, é evidente.
Capitão Ninja: Você sabe, eu parei de trabalhar com 3D&T porque a antiga editora deixou de fazer os acertos de direitos autorais.
Capitão Ninja: E pior, usavam a verba das vendas para sustentar a Dragão (quer dizer, aquilo em que a Dragão se tornou) depois que saímos.
Capitão Ninja: Esses são problemas que não existem mais.
Guilherme: Temos que ver até que ponto REINOS DE MOREANIA vai cumprir a função de RPG para iniciantes. Porque dependendo disso, valeria ou não investir no 3D&T.
Capitão Ninja: Bom, Moreania não pode substituir 3D&T porque não é genérico. É bem específico para estilo D&D.
Capitão Ninja: Moreania é introdutório para o próprio D20, que é o carrochefe da editora.
Guilherme: E 3D&T, atrai para o RPG em si.
Capitão Ninja: Sim. Mas vejam aí o que acham melhor.
Prometi ao Guilherme dar uma olhada no material, avaliar quanto precisaria ser mexido. A idéia avançou. O trabalho, também.
Relembrando (e copy/colando): 3D&T nasceu em 1994. Começou com poucas páginas, muito simples, como tantos outros nos Estados Unidos — onde RPGs em forma de fanzine existem aos milhares. Cinco atributos básicos, um punhado de vantagens e desvantagens. E um tema da moda: em plena febre dos Cavaleiros do Zodíaco, o jogo era uma sátira aos heróis japoneses e seus golpes mirabolantes, ataques acompanhados de gritos, e estranhos códigos de honra. Daí o nome, Defensores de Tóquio.
No ano seguinte, ganharia uma nova edição sem grandes diferenças mecânicas. Advanced Defensores de Tóquio, abreviado para AD&T. Referência ao contemporâneo AD&D, Advanced Dungeons & Dragons. Mas ainda um jogo para rir das séries nipônicas.
Sua terceira versão seria, esta sim, revolucionária. Licenciando games famosos como Street Fighter, Mortal Kombat, Darkstalkers e Megaman, o novo 3D&T — Defensores de Tóquio 3ª Edição — agora existia na forma de pequenos módulos, formando mini-jogos fechados. Novas regras seriam acrescidas com o tempo, através de artigos em revistas. Em breve tínhamos o primeiro grande módulo básico, o Manual 3D&T. Ele ganharia uma versão Revisada e Ampliada, e ainda uma Turbinada.
Podia ter acabado ali.
Não disse ao Guilherme naquele dia, mas eu tinha outra razão para não querer escrever mais 3D&T. Dez anos trabalhando com vários sistemas de regras, em matérias na Dragão Brasil, me ensinaram que fica impossível atender ou dominar profundamente qualquer um deles.
O mundo de TORMENTA, por exemplo, nasceu como um cenário multisistema para AD&D, Gurps e 3D&T. Mais tarde houve ainda uma edição para Trevas. Regras que um jogo tem, o outro não tem. Era difícil demais lidar com atributos, tendências, níveis, pontuações... enfim, tornar o material harmonioso com tantos jogos diferentes.
Claro, havia a escolha de produzir material diferenciado para cada sistema. Mas éramos (ainda somos) um grupo pequeno de autores. Mesmo trabalhando em tempo integral, dar suporte específico a tantos jogos era impossível.
E outra coisa: alguns daqueles jogos não eram nossos, e nem tinham Licença Aberta. Dar suporte a seus jogadores é responsabilidade de seus autores, suas editoras. Nossa obrigação é para com o nosso público.
Quando o Sistema D20 e sua Licença Aberta surgiram, no ano 2000, nasceu a solução para nosso problema. E também a chance da realização de nosso sonho: escrever um cenário pleno para Dungeons & Dragons, nosso RPG favorito em todos os tempos.
Por tudo isso, e também após desentendimentos infelizes (para dizer o mínimo) com a nova administração da antiga editora, 3D&T ficou de lado. Nos aliamos à Editora Mantícora para começar a DragonSlayer, revista dedicada apenas ao Sistema D20, para concorrer com a DB (e vencer, todos vocês já sabem). TORMENTA, por sua vez, tornou-se oficialmente um cenário D20 na editora Jambô — onde vai muito bem, obrigado.
A Licença Aberta D20 sempre pareceu para nós uma ótima idéia. Sim, desde o começo, mesmo quando tanta gente pregava o apocalipse e temia o fim dos outros jogos, “o Um Sistema para a todos dominar”. (E ainda há quem ache inteligente tomar decisões autorais baseadas em listas de discussão, fóruns e comunidades na Internet...)
Eu e meus colegas fizemos o que pudemos para ajudar essa idéia a crescer por aqui. Trabalhamos em material para novos jogadores, como Primeira Aventura e Ação!!! E eu tentei o Manual 4D&T, uma fusão entre Defensores e o Sistema D20; assim, os “3D&Tistas” também poderiam mudar para o Sistema D20.
É muito melhor trabalhar com um só sistema de regras. Em vez de perder tempo e esforço com versões diferentes do mesmo livro, pode-se passar logo para livros novos. Parecia um bom plano. Mas tinha uma falha.
Quem jogava 3D&T, não queria parar.
Haveria um novo Manual 3D&T. Novo, mas ainda trazendo o número 3.
Qualquer fã sabe que eu procuro inspiração em Street Fighter para dar nomes ao livro básico. SF II foi o primeiro grande sucesso do game. SF III não agradou tanto (muita gente adora a jogabilidade, mas o elenco tinha o carisma de uma beterraba). Então veio SF Zero — ou Alpha. Uma volta às origens, mas com novos lutadores.
A primeira versão de 3D&T foi, justamente, uma adaptação oficial licenciada de Street Fighter Zero 3.
(Mais tarde o Trevisan me avisou que “alfa” é também um termo de informática para qualquer software ainda em estágio de testes. Como o jogo Pathfinder RPG, que nos Estados Unidos deve substituir Dungeons & Dragons 3a Edição, e por enquanto existe apenas em uma versão de testes gratuita.)
O nome estava resolvido. Essa parte foi fácil. O que mais podia mudar?
• O sistema de combate, absolutamente, não foi mexido. Ainda é Força de Ataque (Força ou Poder de Fogo + Habilidade + 1d) contra Força de Defesa (Armadura + Habilidade + 1d). Mas algumas manobras mudaram. Agora, em cada turno, você pode realizar uma ação (ataque ou magia) e um movimento, ou dois movimentos. Sim, é parecido com o Sistema D20.
• Percebi que muitos grupos jogam apenas com personagens de pontuação máxima (12 pontos) por ser muito difícil construí-los com menos. Por isso, muitas vantagens tiveram seu custo reduzido. Quase todas custam 1 ou 2 pontos, e apenas as mais fortes custam 3 pontos ou mais.
• Quase todas as vantagens antigas ainda estão aqui, mas com modificações mecânicas. No geral, ganharam algum benefício mais palpável em termos de jogo: Mestre (agora Mentor), Patrono e Riqueza quase não afetavam um personagem focado em combate. Isso agora mudou.
• Não há mais diferenças relevantes entre Aliados e máquinas. Agora, um robô ou veículo é simplesmente um Aliado construto. Uma nova manobra para comando de Aliados permite pilotar veículos, controlar robôs gigantes e também atuar como treinador de monstros.
• Há várias novas vantagens únicas (que representam raças), e todas foram organizadas em grupos. São eles: humanos, semi-humanos, humanóides, youkai, mortos-vivos, construtos. Muitas também tiveram seu custo reduzido: quase todas custam 0 ou 2 pontos, e nenhuma custa mais de 5 pontos.
• Antes, 3D&T tinha duas escalas de poder — normal e gigante. Agora, as quatro escalas de poder usadas em 4D&T também valem aqui: Ningen (humano), Sugoi (incrível), Kiodai (gigante) e Kami (deus). Cada uma multiplica por dez a escala anterior.
• O sistema de magias muda por completo. O Manual da Magia é uma promessa antiga e nunca realizada (esse nome deve trazer alguma maldição...), então desisti dele. As novas regras que eu planejava incluir nesse acessório agora estarão no livro básico, substituindo o sistema antigo. Não há mais Focus, mas sim três vantagens mágicas: Magia Branca, Magia Negra e Magia Elemental (que inclui Água, Ar, Fogo, Terra e Espírito), por 2 pontos cada. São regras parecidas com uma adaptação do anime Slayers publicada na antiga Dragão Brasil (queestranho... lembro que o Trevisan escreveu boa parte daquela adaptação, mas ele jura que nunca viu um episódio de Slayers).
• Armadura Extra, Vulnerabilidade e Invulnerabilidade não têm mais custo em pontos. Elas só podem ser adquiridas como parte de vantagens únicas, ou através de magias e itens mágicos.
• Telepatia não é mais um requisito para magias mentais (elas fazem parte da escola Elemental/Espírito). Esta vantagem agora tem várias outras utilizações.
• Inimigo deixa de ser uma desvantagem. É isso mesmo, acabou o tempo em que você ganhava 2 pontos por adotar um Inimigo poderoso, e passava a campanha inteira sem nunca encontrá-lo! Inimigo agora é uma vantagem, que oferece bônus em combate contra as criaturas que você odeia (é parecido com uma habilidade dos rangers de D&D).
• Arma Especial não é mais uma vantagem. Todos os itens mágicos são comprados com Pontos de Experiência.
• Não há tabelas de armas. 3D&T nunca terá tabelas de armas. De jeito nenhum.
Foi esquisito voltar a ler aquelas regras. O antigo Manual Turbo — a última grande reformulação, antes de 4D&T — datava de fevereiro de 2003.
Mais de cinco anos, praticamente sem suporte. E as pessoas ainda jogam!
(E o mais engraçado; os perdedores frustrados de sempre acusavam que 3D&T só era sucesso porque tinha matérias na Dragão todos os meses...)
Eu nunca entendi isso. Sério. 3D&T sempre foi um jogo para atrair novatos, para introduzir novos praticantes ao hobby. Em minha opinião — sem falsa modéstia —, existem muitos outros RPGs muito melhores. (Nota: o Guilherme reclamou sobre este comentário, mas o que posso fazer? É verdade...)
Cinco anos jogando 3D&T, sem mudar para algo diferente, para mim é coisa impensável. Impossível.
Deve ser verdade que “em casa de ferreiro, espeto de pau”. Por ser o autor, talvez eu não consiga achar o jogo tão divertido. Talvez 3D&T seja mesmo completo, satisfatório. Quem joga, não precisa necessariamente mudar para algo mais complexo.
O Manual 3D&T Alpha não é um jogo novo, assim como o Manual Turbo também não foi. É o mesmo jogo com pequenas melhoras. Se você tem qualquer dos manuais anteriores, não posso dizer que vale a pena adquirir este. Exceto, talvez, pelas ilustrações: eu tive a sorte incrível de poder contar outra vez com a Erica “Holy Avenger” Awano para novas aberturas de capítulos — ela havia acabado de desenhar a última parte de DBride, e já estava de partida para um novo grande projeto. Vocês logo devem ouvir falar.
Não posso prometer que 3D&T terá qualquer suporte por parte da DragonSlayer. Trabalhar com outros sistemas que não sejam D20 não é a proposta da revista. Além disso, estaríamos voltando ao antigo problema: lidar com dois sistemas, sem ser totalmente fiéis a nenhum.
Não posso prometer, também, que cada título TORMENTA D20 ganhará um equivalente oficial para 3D&T. Isso já era difícil antes, quando ser autor de RPG era meu trabalho de tempo integral (hoje voltei à minha antiga profissão como roteirista de HQs; em média escrevo mais de cem páginas mensais para este e o outro hemisfério).
Não posso prometer, mas também não posso negar que há uma chance. Porque vocês — o público “3D&Tista” — conseguiram manter vivo este jogo quando eu mesmo havia desistido dele. Conseguiram me fazer voltar a acreditar nele, voltar a investir tempo e esforço nele. Então, acho que vocês conseguem qualquer coisa.
Menos tabelas de armas. Não, diacho, não!
— Marcelo Cassaro “Paladino”